
[SÉRIE | O "Neoliberalismo" Estatal] – INTRODUÇÃO
- Marcus L L Chagas

- 14 de jun. de 2020
- 6 min de leitura
Atualizado: 28 de ago. de 2020
No contexto atual, muito se discute acerca do papel do Estado e dos níveis e limites da liberdade econômica e da liberdade individual em diversas sociedades. Na história da América Latina, em particular, há um grande histórico de estatismo, governos nacionalistas e violações recorrentes às liberdades individuais, quando avaliado o nível de liberdade econômica da região, o sonho de liberdade parece ainda mais distante. A partir dos anos 1980, o mundo experimenta um ressurgimento do pensamento liberal reformado, agora teorizado e embasado na teoria econômica das Escolas Austríaca e de Chicago, governos nos Estados Unidos, no Chile e no Reino Unido aplicam com sucesso modelos de administração focados em uma sociedade pró-mercado. Outros países, porém, como o Brasil, experimentam na década de 1990 um movimento de liberalização próprio, que termina por gerar contradições no conhecimento popular acerca da imagem do liberalismo.
A grande questão a ser indagada é: estes países, herdeiros de plataformas teórico-políticas como o Consenso de Washington podem de fato ser considerados como aplicadores de um modelo liberal? Quais serão as orientações básicas para enquadrar um conjunto de políticas públicas em uma agenda liberal ou "neoliberal"? Diante de tais questões e indagações, esta série irá investigar as diferenças entre os modelos econômicos, confrontá-las com as práticas governamentais de governos considerados popularmente como "neoliberais" e buscar um embasamento plausível para determinar como classificar tais governos, à luz do aparato teórico do liberalismo, e tendo como foco a análise do governo brasileiro na década de 1990 e as políticas do Governo Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
O RESGATE LIBERAL (ESCOLA AUSTRÍACA E ESCOLA DE CHICAGO)
Antes de se iniciar a análise proposta, um aspecto fundamental repousa na caracterização correta, não apenas do modelo teórico aplicado, mas também - e principalmente - do conceito- chave de toda a pesquisa: Neoliberalismo. É notório que a corrente econômica vinculada à ideia de um "Modelo Neoliberal" origina-se a partir de uma herança do Liberalismo Clássico - dos séculos XVIII e XIX - e que este pensamento econômico se concretiza nos trabalhos de duas escolas principais: a Escola Austríaca, com nomes como Ludwig von Mises, F. A. Hayek e Murray Rothbard; e a Escola de Chicago (contemporânea da Escola Austríaca), com nomes como Milton Friedman, Richard Posner e Gary Becker. Contudo, o termo comum "neoliberalismo" é constantemente criticado por ambas as escolas, uma vez que seria um termo incorreto para a reincorporação de princípios do liberalismo clássico a uma base monetarista e econométrica mais robusta (ROQUE; MCMAKEN; RALLO, 2016).
Além da inadequação do termo, há uma questão política bastante significativa por trás de seu uso como um adjetivo pejorativo a este universo, sobretudo às Políticas Públicas desenvolvidas no período. Como Mises já dizia no início do século XX, há uma tentativa constante de se depreciar a pratica liberal ou perverte-la por meio de uma aproximação incorreta a uma ideia de terceira via - presente desde o fim do século XIX. Deste modo, ações e modelos de governos não-liberais acabariam sendo negativamente taxados de "neo-liberais", sem que apresentassem nem mesmo estruturas suficientes para sustentar um princípio liberal. Neste cenário, se distingue claramente o que seria uma ideia de terceira via - um entreposto entre o socialismo e o Liberalismo - daquilo que pejorativamente se taxa de "neoliberal" - ou seja, a sofisticação liberal feita pelas teorias econômicas de Vienna e Chicago. Entretanto, quando analisadas as duas escolas em particular - comumente conhecidas como as "fontes do pensamento neoliberal" - percebe-se uma diferença significativa: o papel do mercado (ROQUE; MCMAKEN; RALLO, 2016).
A Escola de Chicago, embora notoriamente preocupada com questões caras ao liberalismo, por muitas vezes acaba defendendo o protagonismo do Estado em áreas que, segundo os austríacos, seriam exclusivamente de atuação e regulação do próprio mercado - a exemplo da política monetária. Isto gera uma situação na qual, embora se defenda um certo nível de esvaziamento do Estado, e, sobretudo, seu funcionamento eficiente, não se caracteriza como um modelo de mercado puro - como o proposto por Rothbard - mas sim como um modelo que reforma a atuação do Estado e reestrutura arranjos governamentais (GOMES, 2010).
Embora autores austríacos como Mises e Hayek defendam uma mínima intervenção do Estado (Estado Mínimo) - em aspectos fundamentalmente estabilizadores e garantidores das condições de mercado, como regras e segurança jurídica - este pensamento não é homogêneo nas duas escolas que em teoria compõem a chamada "doutrina neoliberal", levando a maioria dos economistas a defender um modelo de economia mista - nem planificada, nem absolutamente mercadológica. Desta forma, podemos inferir que a Escola Austríaca se coloca em uma posição de maior defesa do mercado auto-regulado, enquanto a Escola de Chicago - mesmo que bastante liberal - tenha uma ótica mais interventora - ainda que muito distante do modelo de Bem-Estar Social e do planejamento Keyneisano. Então, esta ideia de uma vertente "neoliberal" é embasada por estas duas escolas, ainda que com suas diferenças, e se baseia em um olhar pró- mercado (mesmo que não absoluto) da natureza econômica, com um universo bastante liberalizante - sobretudo, e principalmente, do setor financeiro e da economia real (ROQUE; MCMAKEN; RALLO, 2016).
Por outro lado, e aqui repousa a questão mais relevante, quando aplicada para a América Latina, a ideia de maior liberdade econômica não surge em comunhão, nem com a Escola Austríaca, nem com a Escola de Chicago, mas sim na manifestação do Consenso de Washington - que, segundo seus próprios fundadores, nunca teve a pretenção de um programa amplo de liberalização ou de adesão às políticas do que se chamava de "neoliberal" (Escola Austríaca e Escola de Chicago). O Consenso de Washington surge como um fornecedor de políticas voltadas para a América Latina. Neste ponto, tem-se um caráter liberal presente - ou seja, um modelo com maior liberdade econômica que um Estado Keynesiano ou Desenvolvimentista - mas não se tem um modelo pró-mercado, necessariamente (GOMES, 2010). O Consenso propõe, ao contrário do pensamento Austríaco, uma reforma do arranjo de instituições do Estado, com um caráter prático de maior liberdade econômica, e não um modelo regido pelo mercado. Uma estrutura em que haja certo grau de planificação econômica de modo a garantir a eficiência econômica (e cobrir "falhas do mercado" por meio da intervenção do governo) (CARPIO, 2015).
Em verdade, a ideia para a América Latina do Consenso de Washington se volta muito mais para uma reforma na forma de intervir do governo - de modo a torna-la menos custosa e mais eficiente - do que para uma política de liberalização econômica ou um processo de revisão do papel do Estado em sua natureza. A ideia do Consenso não é uma ideia de um Estado menos presente e de um mercado auto-regulado, mas sim de um Estado eficiente, responsável, pouco ou nada endividado, e que provenha bem-estar social e distribuição de renda (WILLIAMSON, 2002). Assim, fica claro que, em muitos de seus pontos, o Consenso busca propostas que atentam contra a ideia de uma economia com maior participação do mercado, ou seja, suas proposições não são de fato parte do que se chama de "Neoliberalismo", apesar de apresentarem naturalmente um grau maior de liberdade econômica (comparado aos modelos que se tinha antes) e de se desenvolver em um período comum ao resgate liberal, em países como Chile, Estados Unidos e Reino Unido (GOMES, 2009).
A partir disso, é mais fácil perceber que o modelo econômico-administrativo incorporado por determinados países Latino-americanos na década de 1990 - como o Brasil - em sua estrutura não é um modelo "neoliberal", mas sim, algo muito próximo do que autores do período chamam de "Terceira Via". Logo, como será demonstrado no próximo texto, países como o Brasil, apesar de adotarem algumas medidas dos meios liberais, basearam sua estrutura político-econômica em um modelo que lida com desafios macroeconômicos de curto e médio-prazo valendo-se do rearranjo do Estado e de ações liberalizantes, mas que, a partir de um olhar mais técnico e analiticamente pormenorizado, em pouco ou nada se relacionam à base do que se chama de "Neoliberalismo" - das Escolas de Vienna e Chicago (GOMES, 2009).
REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
CARPIO, Juan Fernando. Sobre as Reformas "Neoliberais" na América Latina e por que Elas Fracassaram. Instituto Mises Brasil, 05 maio 2015. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1775>.
GOMES, Thiago Beserra. O Conceito de Neoliberalismo. Instituto Mises Brasil, 24 nov 2010. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=835>.
GOMES, Thiago Beserra. O Mito da Defesa do Mercado no Consenso de Washington (Concurso IMB). Instituto Mises Brasil, 18 dez 2009. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=554#Parte1>.
ROQUE, Leandro; MCMAKEN, Ryan; RALLO, Juan Ramón. Você Sabe o que Realmente Significa "Neoliberalismo"?. Instituto Mises Brasil, 25 out 2016. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=2542>.
WILLIAMSON, John. What Washington Means by Policy Reform. Chapter 2 from Latin American Adjustment: How Much Has Happened?. In Peterson Institute for International Economics, 01 nov 2002. Disponível em: <https://www.piie.com/commentary/speeches-papers/what-washington-means-policy-reform>.
Marcus L L Chagas é Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG, estudioso e pesquisador de Política Internacional, com ênfase em Política Britânica, História Geral e Distribuição Internacional de Poder. É membro-associado da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra - Delegacia do Estado de Minas Gerais (ADESG-MG).







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