Como estava sendo abordado no texto de Introdução desta série de artigos, países como o Brasil, apesar de adotarem algumas medidas dos meios liberais, basearam sua estrutura político- econômica em um modelo que lida com desafios macroeconômicos de curto e médio-prazo valendo-se do rearranjo do Estado e de ações liberalizantes. Por problemas de definição, e até mesmo de interferência ideológica, o meio cultural e acadêmico passa a tratar diversas medidas diferentes como pertencentes a um mesmo tipo de doutrina, com é o caso do rótulo criado, sobretudo pela esquerda brasileira “Neoliberal”. Tendo mencionado, anteriormente, a origem e um pouco dos parâmetros do resgate liberal ocorrido na segunda metade do século XX, seguimos na tarefa de identificar outros elementos que compõem esse emaranhado de ideias e contribuem para esta confusão de definições, práticas e políticas, analisando, agora um pouco melhor, o famoso Consenso de Washington.
Quando mencionado no meio acadêmico, é comum que a ideia por trás do assim chamado Consenso de Washington seja automaticamente direcionado para uma proposição do meio liberal, e naturalmente confundido com aquilo que se chama de "neoliberalismo". Como foi apresentado, em termos mais técnicos e em uma análise um pouco mais aprofundada desta realidade, é possível perceber que, embora as dez medidas do Consenso possuíssem um caráter notoriamente liberalizante, e o colocassem mais próximo de uma economia de mercado - quando em comparação aos demais modelos adotados na América Latina - os princípios do Consenso tinham como norte sempre a ação do Estado. John Williamson, o principal economista por trás da estrutura do Consenso de Washington, iniciou o debate que culminou nas 10 proposições de Washington com o intuito exclusivo de fornecer alternativas aos Estados latino-americanos para que estes melhorassem suas economias e estabilizassem seus cenários de crise - não para que o continente iniciasse um processo de transição para uma economia de livre-mercado (WILLIAMSON, 2002).
Quando comparadas as proposições de Washington com aquelas da Escola de Chicago e da Escola Austríaca, há uma tendência em reduzi-las a um denominador comum: o Liberalismo. Entretanto, as fundamentais diferenças entre os modelos propostos repousa em um aspecto mais profundo, sobre a própria concepção de Liberalismo. Para as duas escolas, o liberalismo exigia uma conexão inexorável com a ideia de livre mercado e de um Estado que não fizesse políticas econômicas diretas, mas que apenas garantisse as condições de um mercado livre (ALMEIDA, 2018). Para os teóricos do Consenso, como Williamson, a participação do Estado em políticas econômicas era fundamental, mas tal interferência teria uma carga liberal (e não necessariamente de livre-mercado) no sentido de que este "novo Estado" interferiria diretamente em poucos setores - para que não se sobrecarregasse e, assim, fosse mais eficiente - e realizaria políticas macroeconômicas que não se chocassem com o mercado. Assim, a clara distinção entre as proposições se encontra na atuação prática do Estado e na proximidade a uma economia de mercado (CARPIO, 2015).
Para Williamson, quando as práticas defendidas pelo Consenso começaram a ser rotuladas de "neoliberais", houve grande estranhamento, uma vez que ele sabia que diferenças fundamentais poderiam estar sendo ignoradas. Diferenças estas que, inclusive, que fizeram Williamson declarar que a essência do projeto - um mínimo denominador comum às recomendações de políticas econômicas - estava sendo perdida, uma vez que, segundo o próprio economista, aspectos fundamentais do pensamento Austríaco e de Chicago - como liberalização de contas de capital externo, monetarismo e minarquia (Estado mínimo) - nunca fizeram parte do seu conjunto de ideais. O autor ainda afirma que a promoção do bem-estar social e a distribuição de renda - questões muito condenadas pelas escolas liberais - eram obrigações e funções básicas inerentes ao Estado (WILLIAMSON, 2002).
Sobre o assunto, o Diplomata Brasileiro Dr. Paulo Roberto de Almeida, um liberal expressivo no universo latino-americano, escreveu dois artigos "O Mito do Consenso de Washington" (20- -) e "Revisitando o Consenso de Washington" (2011), nos quais ele confronta a imagem "neoliberal" perpetuada do Consenso e contrapõe suas proposições, uma a uma, com diferentes princípios do liberalismo (GOMES, 2009). Citando (aqui) os principais pontos de conflito entre as propostas, o diplomata argumenta que: 1) no caso da Disciplina Fiscal, embora seja uma proposição acertada e necessária - governos não se endividarem - o Consenso defende uma racionalização de contas públicas para que o endividamento não seja alto, e não por uma ótica de redução real do poder fiscal do governo; 2) no caso da Prioridade nos Gastos Públicos, há claramente a defesa do papel do Estado como provedor social - o que seria impensável ou muito pouco presente em uma filosofia liberal (pro-mercado) - defendendo que o Estado atue com vigor, e prioritariamente, em áreas como infra-estrutura, previdência social, saúde, educação, etc. Assim, o Consenso acaba por propor que despesas "evitáveis" recaiam sobre o Estado, e não que haja um processo de diminuição da presença do Estado e dos gastos sociais; 3) em suas proposições de Privatização de Estatais (Ineficientes) e de Desregulamentação de Setores Controlados ou Cartelizados, há uma série de problemas na visão minarquista, uma vez que o Consenso admite a manutenção de Estatais "eficientes" - o que culminaria também nos casos de Estatais "Estratégicas", como a Petrobras - defende concessões em muitos setores, em vez de privatizações completas - o que, ainda colocaria o governo no centro destes mercados, como reguladores e interventores, e de modo muito ineficiente, uma vez que o governo não tem a capacidade de superar o problema da informação nos mercados - e ainda entra em contradição com sua proposição de desregulação, uma vez que a defesa implícita de uma carga reguladora expressiva - agências reguladoras governamentais - acaba por fomentar a burocracia como grande regente da atividade econômica (ALMEIDA, 2018).
Assim, quando analisado com um pouco mais de cautela e atenção, fica evidente que o Consenso de Washington, embora tenha um caráter de liberalização expressivo - frente a um modelo Keyneisano ou cepalino, por exemplo - possui em sua base diferenças significativas diante daquilo que se consolidou como "pensamento neoliberal", ou seja, Escola Austríaca e Escola de Chicago (WILLIAMSON, 2002). A partir desta consciência, cabe agora avaliar se governos latino-americanos aplicaram um planejamento econômico baseado no Consenso de Washington (liberalizante, mas não necessariamente pró-mercado), ou baseado no que se entende comumente como "Neoliberalismo" (liberalizante, pró-mercado e de influência minarquista) (GOMES, 2009).
REFERÊNCIAS E RECOMENDAÇÕES DE LEITURA
ALMEIDA, Paulo Roberto de. Revisitando o Consenso de Washinton (2011). Diplomatizzando | Paulo Roberto de Almeida, 09 abr 2018. Disponível em: <http://diplomatizzando.blogspot.com/2018/04/revisitando-o-consenso-de- washington.html?m=1>.
CARPIO, Juan Fernando. Sobre as Reformas "Neoliberais" na América Latina e por que Elas Fracassaram. Instituto Mises Brasil, 05 maio 2015. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=1775>.
GOMES, Thiago Beserra. O Mito da Defesa do Mercado no Consenso de Washington (Concurso IMB). Instituto Mises Brasil, 18 dez 2009. Disponível em: <https://www.mises.org.br/Article.aspx?id=554#Parte1>.
WILLIAMSON, John. What Washington Means by Policy Reform. Chapter 2 from Latin American Adjustment: How Much Has Happened?. In Peterson Institute for International Economics, 01 nov 2002. Disponível em: <https://www.piie.com/commentary/speeches-papers/what-washington-means-policy-reform>.
Marcus L L Chagas é Bacharel em Relações Internacionais pela PUC-MG, estudioso e pesquisador de Política Internacional, com ênfase em Política Britânica, História Geral e Distribuição Internacional de Poder. É membro-associado da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra - Delegacia do Estado de Minas Gerais (ADESG-MG).
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